A trialidade da trava
As diferentes posições do desejo nas relações com mulheres cis e pessoas trans
Agradecimentos a:
Trava Zap, onde podemos trocar de maneira livre sobre o que é ser travesti, conceituar e tensionar o Feminismo e ao mesmo tempo rir, falar besteira, se divertir e se amar.
Pauli Carvalho Ferreira por me ensinar que o amor é possível de outras formas e a positivização e alcance dos poderes do horror. Apavorar e desgraçar é uma forma de ação onde podemos encontrar um lugar de conforto, compreensão e força.
Anna Gabriela por me mostrar o poder da convivência e a sua necessidade para uma construção coletiva da travestilidade, uma apreensão do mundo tocada pelo espiritual e o lugar poderoso da temporalidade espiralada para a compreensão do caráter processual da identidade.
Lu, pelo compartilhamento de tensões dentro das relações afetivas trans e por uma investida muito honesta, dedicada, e verdadeira a uma retomada crítica do conhecimento psicanalítico tensionado tanto pelo Feminismo assim como pela vida e filosofia de pessoas dissidentes de gênero.
J.P Caron pelas exposições, trocas e conversas sobre o “Mito do Dado”, filosofia analítica e as pontes possíveis com noções marxistas sobre “alienação”, “ideologia”, “reificação” e “sobredeterminação” às quais permeiam o texto. Enquanto a proposta de Jean é amparada no Marxismo Pós-Sellarsiano, minha empreitada baseia-se em uma dinamização do marxismo com os conceitos de subjetivação e ação política do Feminismo e um alargamento do vocabulário teórico do Travafeminismo a partir da revisão de conceitos da tradição marxista. O “Dado” aparece no texto como as noções implícitas de “Feminino” e “Masculino”.
Aquele resignado, trágico otimismo era a sua única fé e a base do seu caráter. — Louis-Ferdinand Céline, Voyage au bout de la nuit (1932).
O glamour é algo liso e brilhante, invocado de várias formas, necessariamente mistificado e raramente teorizado de maneira sustentável. Nesse projeto, eu considero o glamour, a beleza e a feminilidade como tecnologias de práticas específicas, que resultam em elegibilidade social, poder íntimo, e potencialmente, sobrevivência física em ambientes hostis. Portanto, a produção do glamour, da beleza e da feminilidade funciona dentro das economias transnacionais de desejo e consumo. Dentro dessas economias, o glamour permite que seus praticantes obtenham autoridade extra-local, materializando um espaço contingente de ser e pertencer. Apesar disso, o glamour não é redentor – e não irá salvar você; e é nesse ponto em que se torna difícil explicar o glamour como política — Maria Ochoa, La Moda Nace en Paris y Muere en Caracas: Moda, Beleza e Consumo no (Trans) Nacional (2011).
Nós devemos tentar entender filosóficamente (politicamente) esses conceitos de “sujeito” e de “consciência de classe” e como eles trabalham em relação à nossa história. Quando nós descobrimos que mulheres são os objetos da opressão e apropriação, no próprio instante que nos tornamos capazes de perceber isso, nós nos tornamos sujeitos no sentido de sujeitos cognitivos, através de uma operação de abstração. Consciência de opressão não é somente uma reação à (lutar contra) opressão. Também é toda a reavaliação conceitual do mundo social, sua reorganização completa com novos conceitos, do ponto de vista da opressão. É o que eu chamaria de a ciência da opressão criada pelos oprimidos. Essa operação de entender a realidade tem que se tomada por todas nós: chame-a de uma prática subjetiva e cognitiva. O movimento de ida e vinda entre níveis de realidade (a realidade conceitual e a realidade material da opressão, às quais são ambas realidades sociais) é conquistado através da linguagem. — Monique Wittig, One Is Not Born A Woman (1981).
O seguinte texto é sobre a oposição (e por vezes, sobreposição) que as relações transcentradas ocuparam na minha vida nos últimos 8 meses em relação às pessoas cis com as quais passei me relacionando afetivamente grande parte da minha vida, tanto pré como pós a conscientização de “ser travesti”. Evidentemente, por respeito a todas essas pessoas, não trarei nomes nem situações específicas; mas as reflexões que tem permeado principalmente as relações transcentradas.
O espaço social da travesti e a construção da consciência de gênero
Bom, o primeiro espaço deste texto é a realidade de que 90% das travestis lida com o trabalho sexual. Eu ainda sou pertencente aos 10% que não participou da negociação financeira do corpo, mas nos momentos em que a minha estabilidade financeira parece ameaçada, essa é a primeira opção a qual ocupa a minha cabeça. O segundo espaço é, como aponta Bruna Benevides em 2019, é do Brasil, país do transfeminícido, e sua liderança no consumo de pornô travesti. É perceptível que há, entre esses dois indicativos, um alto grau de fetichização e objetificação de travestis. Com essas estatísticas, e em trocas de ordem pessoal e anedóticas com outras travestis — qualquer trava sente o olhar violento do desejo de todos os homens ao transitar por espaços públicos, isso quando o olhar não se traduz em um assédio ou até mesmo um estupro — evidencia-se o lugar do desejo que uma travesti ocupa. Entre o objeto e o sujeito, a travesti gera fascínio e horror em níveis iguais de intensidade. Dentro dessa ótica, é nesse lugar que o sujeito travequeiro aparece. Contudo, o sujeito travequeiro geralmente é descrito como o homem cis, o qual age com as travestis muitas vezes na situação de prostituição, ou quando mantém relações afetivas, através do sigilo (muito bem exemplificado na primeira temporada de Manhãs de Setembro): a travesti, quando “amada”, é a amante. A outra mulher. A vida afetivo-sexual do homem de família.
Porém, ao notarmos esse fator estrutural geral, cabe a pergunta:
Não há um fator “ideológico”, “estrutural” ou “naturalizado” do lugar fetichizado da travesti o qual, muitas vezes, estende-se para além do homem cis?
Ou, se formos mais poucas: podem mulheres cis e pessoas trans reproduzirem uma “lógica travequeira”?
Não seria o “sujeito travequeiro” uma categoria mais ampla, e mesmo uma forma de agir passível de ser internalizada e reproduzida por outras pessoas trans?
Penso que sim.
Antes de prosseguir, pois penso que o ponto é um tanto quanto polêmico, gostaria de fazer uma pequena analogia com outra forma de opressão: são todas as pessoas pertencentes à classe trabalhadora conscientes da opressão às quais são submetidas? Obviamente, não, visto que caso isso fosse uma realidade não viveríamos sob uma forma organizacional capitalista. Penso que aí está a grande questão de um dos aspectos longamente debatidos dentro da tradição marxista, e os quais estão muito presentes em um dos seus expoentes hoje mais famosos, Slavoj Zizek, que é: a Ideologia. Se a alienação é uma parte constituinte de uma concepção de classe, a qual é oposta à consciência ganha pela luta coletiva dos trabalhadores, gostaria de trazer um conceito à tona diretamente retirado da tradição marxista: consciência de gênero.
Assim como a consciência de classe é criada de maneira dinâmica entre um nível “conceitual” (discursivo-ideológico) e “material” (prático-estrutural), ou seja, a partir de grupos políticos (tais os sindicatos ocuparam historicamente em muitos âmbitos e momentos, mas todas as formas de resistência de classe) que buscam uma coletividade e ação política — se temos um momento de abertura e troca afetiva com pessoas da mesma classe ou identidade, nos tornamos mais conscientes das condições compartilhadas de opressão — assim como digamos, pela via do trabalho teórico e o estudo das tradições de luta política que nos antecedem e compartilham algumas das mesmas questões (mesmo que elas sejam moduladas em cada situação histórica distinta). É nesse ponto que um estudo cuidadoso de determinados referenciais do Feminismo é parte constituinte de uma formação do Travafeminismo ou do Feminismo Travacêntrico ou por último, como cunhado por minha amiga Dandara, o Vevequismo Radical (quanto a isso, mais sobre no futuro). Para que possamos realizar uma melhor apreensão da realidade (seja ela conceitual ou material), é necessária a criação de uma nova linguagem ou um novo vocabulário que nos permita trabalhar em consonância com essa luta. Caso contrário, vemos que “pelas portas do fundo”, certas noções da “lógica normativa” entram com muita facilidade e a manutenção de uma luta política se torna difícil, quando não impossível.
Vemos aí que existem dois pontos possíveis para uma reelaboração política da luta travesti, os quais não são inconciliáveis: a convivência — e nesse sentido creio que entre travas existam redes, sejam de amizades ou de outras formas de afetividade que parcialmente cumprem isso — a qual deve ser visto em um âmbito pessoal de convivência (quem nós, travestis, privilegiamos na nossa companhia, amizade, e relacionamentos românticos?) como um âmbito coletivo (como nos organizamos como “classe”, no mesmo sentido que as mulheres do Feminismo se entenderam como classe, para mudar e lutar contra as nossas condições de opressão). De fato, é inegável o alargamento da perspectiva individual quando ela é suplementada pela convivência, especialmente se existe uma interseccionalidade dentro dessa convivência: travestis de classes, raças e lugares diferentes criarão uma compreensão mais ampla, juntas, do que significa “ser travesti”.
O segundo ponto é o elaborado por Wittig, que é o da criação de uma ciência da opressão pelos oprimidos (no nosso caso, A Ciência Imortal do Travecoceno), e é justamente nesse ponto o qual penso essencial tocar neste texto pois é, digamos, a “retórica”, ou como dito antes, a Ideologia, a qual naturaliza certos fatores da vida ao invés de torná-los situados dentro de uma ponto sócio-histórico específico, torna-os com um caráter de “Dado”, ou seja, essencial. Esse essencialismo, como temos visto na onda TERF recente no próprio Brasil (e olha o quanto somos dispostas a trazer e adaptar tendências conceituais e vivências gringas…) se manifesta dentro do debate de gênero de duas formas: 1. Ser mulher está indissociavelmente ligado a nascer do sexo feminino (uma coisa que, curiosamente, poderíamos refutar com a famosa frase de Beauvoir). 2. Ser mulher advém-se da divisão sexual anatômica, mas ocorre através de uma “socialização” espécfica, e é por essa “socialização” que homens seriam, então, os ocupantes do papel de opressor. Enquanto o caráter de “Dado” é evidente no primeiro caso (nós sabemos muito bem a quantidade de dominações históricas e opressões instrumentalizadas em prol da “Natureza”), no segundo ele é camuflado pelo seguinte motivo: existe uma redução da complexidade do período da “socialização” durante a infância e adolescência às quais, completamente, ignoram os lugares de crianças desviantes do que o que poderíamos chamar, a partir de Wittig, de modelo hétero. As feministas que argumentam pelo segundo ponto, muitas delas ligadas ao lesbianismo separatista estadunidense, assumem que todos os homens — ou melhor, todas as pessoas nascidas do sexo masculino — são perfeitamente adaptados à idealização que o gênero supõe. Uma conversa rápida individual ou coletiva (ou seja, pautada na proximidade e convivência com outras travestis) demonstra que existe uma experiência comum de ser identificada na infância e na adolescência com uma forma “feminina de se comunicar ou se expressar”. Ou seja, é evidente, visto que os papéis de gênero em ambos os casos são formas de opressão, que a repressão proposta pela masculinidade não é um modelo (nada) adaptável a uma parte considerável das pessoas nascidas do sexo masculino. E é justamente naquele texto em que Wittig desmonta essa lógica ao delinear que tanto “feminino” quanto “masculino” são construções situadas sócio-históricamente, e que esse movimento lésbico (muito presente nos EUA) reforça a concepção opressora de “feminino” ao pensá-lo ainda na oposição binária proposta pelos seus próprios opressores. Ou seja, ao utilizar um verniz de “dinâmica social”, essas feministas argumentam que essencialmente o que deve ser defendido é o Feminino, acabam por reificá-lo ou torná-lo naturalizante, e ocorre um apagamento dos comportamentos desviantes (os quais podemos dizer que antes de se existir uma ideia de “trans”, podemos identificar isso na sexualidade, ou seja, nas crianças viadas e suas diversas manifestações). Uma postura passiva e “feminilizada” frente ao mundo é vista como a forma correta de atuação, em contraposição à “agressividade” e “ação” associadas à masculinidade. Seja pela via de um naturalismo biológico — o qual Wittig pontua muito bem que parte de um fundo de darwinismo social —, seja pela retórica da “socialização” que achata a complexidade do que é ser uma criança reprimida a ser “homem” ou “mulher” e a sua adaptação ou não a isso, vemos que ambas posições fortalecem o lugar social ocupada pelo Feminino.
Bom, agora por que consciência de gênero em um texto, a princípio, focado em experiências de âmbito pessoal? Porque creio que justamente seja uma Ideologia Hétera e a presença de uma má consciência de gênero alguns dos fatores estruturantes de todas as relações afetivas que eu tive, sejam elas longas ou curtas. Na próxima seção, passarei pela trialidade constituinte das minhas experiências afetivas, todas pensadas em relação às três citações iniciais.
O triangulamento do desejo ou três coisas que sei sobre ser abjeta
Quando nós usamos o termo sobregeneralizante “ideologia” para designar todo os os discursos do grupo dominante, nós relegamos tais discursos ao domínio das Ideais Irreais; nós esquecemos a violência material (física) que eles diretamente fazem às pessoas oprimidas, uma violência produzida pelos discursos abstratos e “científicos” assim como os discursos da mídia de massa. Eu gostaria de insistir na opressão material de indíviduos através dos discursos. Monique Wittig, The Straight Mind (1980).
É notável a verve marxista da escrita de Wittig. Todavia, penso que no processo de tanto fazer um tipo de adequação das preocupações do marxismo (e uso das categorias de classe, ali não como divisão de classes dentro do capitalismo, mas sexo-gênero como uma forma de classe, tal qual em Shulamith Firestone e Gayle Rubin) e a própria ressignificação de uma ideia de “sujeito” que não esteja restrita aos movimentos de alienação ou conscientização. Ou seja, o que Wittig delineia enquanto prática subjetiva e cognitiva é tomar dentro do conceito de sujeito marxista um espaço maior de agência e uma abertura para uma ação política maior.
É nesse sentido que essa citação do uso de ideologia pelos marxistas se encaminha. Contudo, vou trazer três características/fatores/traços dentro dos espaços dos afetos que me parecem, então, resgatar a ideia de Ideologia de uma noção “generalizante” para uma abordagem situada.
Vamos então por uma breve passagem pelas fontes das três citações iniciais. Devo ressaltar que minha tese, pelo o que passei dentro das minhas relações afetivas, é que esses três núcleos não são autoexcludentes, mas partes coexistentes das dinâmicas sexuais que envolvem ser travesti. Em alguns momentos, para descolar a reflexão da minha experiência íntima e criar uma perspectiva mais coletivizada, irei trazer como esses fatores sexuais e posições eróticas influenciam em dinâmicas sociais de diversas travestis.
A garota fálica como veículo do desejo: abjeção e jouissance — os dois lados de um jogo erótico
A encenação descuidada de um aborto, de um nascimento auto-dado sempre abortado, ininterruptamente sendo renovado, a esperança pelo renascimento passa por um curto-circuito na sua própria cisão: a vinda de uma própria identidade demanda uma lei que mutila, enquanto a jouissance demanda uma abjeção da qual a identidade se torna ausente. Esse culto erótico do abjeto faz com que alguém pense em uma perversão, mas ela deve ser distinguida de uma vez do que simplesmente desvia da castração. Mesmo se o nosso fronteiriço é, como todo sujeito falante, sujeito à castração no sentido que ele deve ser lidado com o simbólico, ele de fato corre um risco maior do que os outros. Não é parte de si mesmo, vital como deve ser, que ele está ameaçado a perder, mas a sua vida inteira. Para se preservar dessa separação, ele está pronto para mais-fluxo, discarga, hemorragia. Tudo mortal. Freud tinha, de forma enigmática, percebeu-a em conexão com a melancolia: “ferida”, “hemorragia interna”, “um buraco na psiquê”. A erotização da abjeção, e talvez de qualquer abjeção no sentido que ela já é erotizada, é uma tentativa de parar a hemorragia: um limite antes da morte, uma pausa, ou uma prorrogação? — Julia Kristeva, Powers of Horror, seção “Confrontando o Maternal” (1977).
Dentro da minha trajetória pessoal, o conceito de abjeção foi o primeiro que encontrei dentro da escrita do Feminismo que trazia um poder elucidante muito forte para a condição das travestis (faço uma breve síntese dele em Enraivecida na Fúria dos Hormônios, o texto precedente). A polivalência dinâmica de sentido que Kristeva trabalha ao redor da abjeção parece sustentar a multiplicidade da experiência travesti. Nesse caráter de oscilação entre sagrado e profano, entre objeto e sujeito, há algo de criptotrava na escrita da Kristeva: ao refletir sobre uma “experiência universal” (a ontogênse do “Eu” a partir da sensação de separação da criança do corpo da mãe), e matizá-las pelas experiências estéticas (há uma ênfase forte no texto da Julinha sobre a literatura) assim como pela experiência feminina, Kristeva desvela um fator que parece atravessar algo basal da experiência travesti (como é bem argumentado no artigo Os Tentáculos da Tarântula): um lugar de animalização, de oscilação de leitura, e de algo que apesar de marcada de uma leitura social negativa, é passível de uma forte positivação ou instrumentalização. Isso é, em partes, como entendo que a fala das travas, marcada pela afirmação, agressividade, defesa e deboche, se faz. Como uma forma de postura e armadura dentro de um país marcado pela nossa morte. Porque no fim, a abjeção é geradora de medo e provoca instabilidade no ego.
Antes de lidar diretamente com essa citação, é válido sublinhar que os segmentos seguintes da escrita fragmentária — e ainda sim conceitualmente muito rigorosa — de Kristeva no livro passa a se debruçar como, a partir de rituais que instituem a noção de sagrado, há por um lado uma formação neurótica e defensiva, e uma inominável outridade do qual se trata do feminino, ou da figura materna. Em suas palavras, trata-se da “rocha sólida da jouissance e da escrita”.
Devo retornar a jouissance logo mais, e a abjeção no fim desse segmento, porém creio que há um fator interessante a ser traçado: desse trecho em diante, a abjeção ganha um grande fator na formação das organizações culturais, ou do que Kristeva chama da codificação cultural. A abjeção reaparece no tabu e é lugar no qual a Mãe Primordial, pronta para tragar em águas escuras o senso de sujeito formado, como é o caso do estado da formação psíquica do bêbe, é não só o movimento da proibição e o estabelecimento da hierarquia, como uma forma de sintoma da própria fraqueza da proibição, e consequentemente a própria instabilidade de um senso de “Self limpo”. A abjeção é o “resto inominável” que ameaça a primeira formação do ego, de caráter narcísico. É por isso que se manifesta entre as hierarquias, através das filiações de parentesco, simultaneamente como a base da proibição assim como a sua própria fraqueza.
Segue-se que jouissance sozinha causa a existência do abjeto para existir como tal. Não se sabe, alguém não o deseja, alguém embarca nele. Violentamente e dolorosamente. Uma paixão. E, como na jouissance onde o objeto de desejo, conhecido como objeto a [na terminologia de Lacan], implode com o espelho rachado onde o ego desiste da sua imagem em ordem de contemplar a si mesmo no Outro, não há nada objetivo ou objetal no abjeto. É simplesmente uma fronteira, um desejo repulsivo que o Outro, tornando-se um alterego, cai para que o “Eu” não desapareça em si mas encontre, nessa alienação sublime, uma existência fabricada. Portanto uma jouissance na qual o sujeito é engolido mas na qual o Outro, em troca, conserva o sujeito de fundar-se ao torná-lo repugnante. Alguém então compreende porque tantas vítimas do abjeto são vítimas fascinadas — se não mesmo vítimas submissas e desejantes. — Julia Kristeva, Powers of Horror, seção “Jouissance e Afeto” (1977).
Observamos aqui a leitura de Kristeva, a partir de Jacques Lacan, como a jouissance opera como o próprio fator fundante da abjeção. Mas o que significa, afinal, jouissance? Em francês, jouissance enquanto palavra coitidiana significa um prazer intenso, tanto de ordem mais estética, intelectual ou até mesmo somente física.
Primeiramente, em Freud — farei uma breve síntese a partir do seguinte texto — e aqui estou partindo da concepção em Além do Princípio do Prazer (1920) a pulsão da morte é uma pulsão primordial. Ela seria como o funcionamento da entropia — e vale lembrar que o modelo libidinal de Freud é baseado nas leis da termodinâmica — dentro da psiquê humana, o desejo de retornar para um estado indiferenciado, do qual a vida unicelular em uma grande massa aquosa seria, finalmente, alcançada de novo. Essa ideia é tratada de diferentes formas por outros autores do Círculo Interno de Freud, um grupo fundador da psicanálise como campo especulativo o qual frequentemente é ignorado por conta da influência do próprio Freud e de Lacan; como é no caso de Sándor Ferenczi e Otto Rank, onde há uma ênfase na relação com a mãe — tal como em Kristeva — e o retorno a esse estado indiferenciado torna-se o retorno ao útero (e daí que derivariam-se a associação da Mãe com a Escuridão, o Mar, a Natureza — Thalassa).
A diferença entre Freud e Lacan nessa questão é interessante. Lacan retoma o termo de pulsão no seu original em alemão, Trieb. Contudo, devido ao viés Estruturalista do francês, ele pensa (negativamente) que há algo entre o “psiquíco e o somático” nessa concepção. Como Lacan dá prevalência a um modelo linguístico-estrutural (“O inconsciente é estruturado como linguagem”), ele retira o caráter aqui enérgico do corpo e o seu investimento na própria elaboração do “sujeito falante” — algo que Kristeva retoma com muita ênfase ao fazer um retorno a Freud em diálogo com Lacan — o que importa é a “cadeia de significantes”. Levando em conta a noção de pulsão retomada por Lacan, e especificamente da pulsão da morte, toda pulsão é ambivalente: é representativa do sexual e da morte e do encontro dos dois. A jouissance, então, em primeiro momento é a satisfação da pulsão e ainda sim possui um caráter excessivo, destrutivo e violento.
Agora, pensemos que em todas essas acepções, jouissance é traduzida como Gozo. O Gozo para Lacan — um tipo de leitura que é síntese da pulsão de conservação e a pulsão da morte — é uma submissão do desejo a um tipo de Bem Soberano, ou o que Lacan chama de “A Coisa”. A Coisa pode ser qualquer coisa que ocupe o “núcleo” inacessível de uma certa “base ética” ou “perspectiva de realidade”. É o que veremos em Zupancic e Zizek análogo como o “núcleo duro” do sonho ou o “enquadramento emocional” que é constituinte do sujeito. Para Lacan, portanto, o Gozo é também algo inalcançável, pois é uma satisfação que não se completa. Há uma expansão do significado do Gozo, mas a qual seria demasiadamente demorada para ser elaborada aqui.
Retomando Kristeva, então, a jouissance é um caráter excessivo do desejo que nos lembra que a sensação de um “Eu unitário” é essencialmente ilusória. O modelo pulsional-libidinal de Freud na realidade demonstra que o que chamamos de “Eu” (ou ego) é heterogêneo, fragmentário, e justamente por isso possui um potencial de mudança. Contudo, são as repressões do mundo que fortalecem e ego e a criação das estruturas psiquícas (o que gosto de definir como nossa ética pulsional frente o mundo). A jouissance seria então essencial pra disrupção da sensação de “Eu”, justamente pelo seu caráter inalcançável e simultaneamente propulsionando o sujeito para a satisfação do seu desejo. Antes de entrar em um relato semibiográfico e coletivo desses dois conceitos, trago novamente Julinha:
Eu experiencio abjeção somente se um Outro se firmou no espaço e função do que será um “eu”. De forma algum um outro com o qual eu identifico e incorporo, mas um Outro que me precede e possui e através dessa possessão me torna em mim. Uma possessão anterior ao meu advento: um estar-lá do simbólico que um pai pode ou não encarnar. Significância é de fato inerente ao corpo humano.— Julia Kristeva, Powers of Horror, seção “Jouissance e Afeto” (1977).
O primeiro ponto que a travesti encarna como corpo é o de abjeta. E é justamente a polivalência da abjeta, a encarnação de um tabu social (é evidente que a transmisoginia é simultaneamente pautada na misoginia direcionada às mulheres cis e o espaço feminilizado social, e por uma lógica essencialista por conta da homofobia ao associar que o desejo por uma garota com pau tornaria um homem em “menos homem”). Uma travesti que anda pelas ruas do centro, que está no transporte público, basicamente que vive uma vida em um espaço com mais pessoas, sabe o que é ser uma abjeção ambulante. E aqui podemos voltar para a condição social específica que coloca as travestis em seu lugar tão singular no Brasil: o país do transfeminicídio e o país número um do pornô travesti. Desejo sexual e desejo de morte, o olhar dos homens pelos espaços que passamos é exemplar disso: de certa forma parece um ódio pela nossa aparente “facilidade” (uma autoilusão inconsciente dos homens cis) em renunciar as opressões de gênero associadas a “ser homem” que nós rejeitamos ou deslocamos. Ao mesmo tempo, há um olhar sexual extremamente invasivo, um desejo de dominação e submissão do nosso corpo, e aqui justamente a transmisoginia toma uma das suas faces mais perversas: passamos a ser um objeto de fascínio interminável, alguém a ser consumido com os olhos, com as mãos e de todas as formas possíveis. Nojo e atração sexual, a presença da travesti em espaços sociais desestabiliza o “Eu” das pessoas cis, e pela multiplicidade de sensações que provoca, os lembra que esse “Eu”, uma ficção útil para lidar com o caráter repressivo da vida, não é nada além de uma entidade frágil. Como eu posso desejar, no mesmo nível de intensidade, transar com ela e matá-la? Como estou do outro lado dessa relação de desejo, deixo essa questão para que os homens me respondam.
E a jouissance, o caráter excessivo, a busca da satisfação do desejo por vezes de forma sexual ou destrutiva (ou ambas) é um exemplo do porque somos constantemente assediadas e até mesmo estupradas. Porque o desejo que nos é lançado não pode ser satisfeito, e tem caráter tanto violento quanto sexual. Por último, uma anedota que parte de ordem mais pessoal: eu nunca soube que era vista de determinadas formas até ter minhas primeiras experiências sexuais com algumas pessoas. Foi a surpresa dos outros ao me verem sem roupa que me deixou claro o caráter excessivo do desejo da Outra e do Outro. Ver esse lugar em que simplesmente o rosto, a expressão, o olhar e até mesmo a posição corporal das pessoas com quem transei se transformava no momento em que me despia nunca exemplificou tão bem que talvez raramente eu estarei desnudada do caráter excessivo e simultaneamente abjeto do meu corpo. Ser uma garota com pau de fato nos coloca em um lugar muito singular do desejo do Outro. Eu não sabia que eu era tão gostosona até algumas pessoas me dizerem.
Subindo no salto da Roberta Close: o glamour travesti como espaço de negociação social
- Roberta, meu filho…
- Pedro, minha querida, me fala uma coisa: por que você não vira travesti também? Eu queria te perguntar isso antes de tudo. O que você acha dessa ideia de raspar esse bigode e virar travesti? Não ficaria bem? — Roberta Close no Show de Calouros do SBT (1988).
“Eu já sou operada pela natureza, eu não preciso de operação”.
Não há frase melhor para definir o que é travesti do que a forma que Roberta Close opera em Show de Calouros. Lá, tanto a beleza travesti — as perguntas todas passam pelo seu gênero, corpo, operações ou não, são voltadas para o desejo do homem; enfim, todas de caráter fetichista — tal a a língua como navalha, a frase que desestabiliza, e o deboche travesti ganham tanta força, e ao mesmo tempo cativam. Colocada em um lugar de constante perguntas de cunho transfóbico — não creio que 80% das travestis hoje manteria a compostura de Roberta e o carisma na resposta — Roberta mesmo sendo tratada no masculino e vista muitas vezes como homem ou “O” travesti, mantém uma calma, um sorriso e uma forma leve de se comunicar, porém não menos impactante.
Trago uma passagem de um texto que fiz sobre o Pajubá recentemente para uma disciplina, a qual eu acho que exemplifica o quão característico é da experiência travesti que a Operação Tarântula e o ápice da fama de Roberta Close ocorram durante o mesmo período:
O que complexifica essa questão do lugar de ser uma travesti abjeta, e que parece apontar uma série de contradições dentro da história sexual da formação do Brasil, é que não só travestis são lidas como nojentas, demoníacas e abjetas, como são alvo de um violento desejo por parte dos homens cis-hétero, como pode ser demonstrado estatisticamente: a modalidade de pornografia que é mais consumida no Brasil é de travestis (geralmente versado como shemale nos sites e utilizado como categoria de busca). Isso encontra, assim como a perspectiva ainda viva travesti abjeta, em um outro tipo de imagem ou Mundo-Eco que funciona dentro da travestilidade: a travesti modelo. Paralelamente à perseguição de 300 travestis em poucos meses em 1987 na cidade de São Paulo, a modelo travesti Roberta Close, a qual inicia a sua carreira com 16 anos, ganha uma projeção midiática que vai além de um impacto local, mas uma inserção como ícone sexual em um alcance nacional. Em 1984, em um tipo de eco ao lugar que foi localizado como eclosão e intensificação da imagem travesti, Roberta Close é vedete do carnaval carioca. No mesmo ano, promovendo algo até então inédito, ela posa como capa da Playboy. Percebe-se que — e aqui o fato de Roberta ser de uma travesti branca de classe média alta do Rio de Janeiro — Close consegue criar um tipo de fascínio que vai além da circunscrição da travesti como necessariamente abjeta. E, contudo, é passível de argumentar que na verdade há algo ainda da abjeção, da curiosidade, e da fetichização em figuras como a dela que ocupam um tipo de feminilidade a qual, pela força da sua imagem e a sua readaptação assimilável de características corporais e culturais associadas ao “feminino”, talvez seja capaz de gerar fascínio em um homem de formas que uma mulher cis não. Como isso se evidencia entre homens é o constante tom jocoso, mas que prova-se honesto pelo que parcela das travestis em prostituição afirmam, travestis “são mulheres com uma surpresinha”, ou como se viraliza hoje em memes tanto entre homens cis como entre travestis: “Uma mulher sem pau é como um anjo sem asas”. Ícone sexual e criatura abjeta, a identidade travesti encarna, encena e provoca uma leitura geral que parece aproximá-la fortemente com a imagem de Lúcifer — Subversão da língua: O pajubá como ferramenta do Imaginário Travesti.
Maria Ochoa dá uma definição de glamour que é um bom conceito para explicar a imagem e postura adotada por Roberta dentro do Show de Calouros e outras das suas participações em programas televisivos. Essa citação foi retirada de um texto de Larissa Pelúcio intitulado Próteses, Desejos e Glamour: Tecnologias de Si na construção de corpos travestis no mercado do sexo transnacional (2011). Gosto muito desse texto e da forma que Larissa o conduz ao abrí-lo com o famoso vídeo de Luísa Marilac. Acho que os memes no geral — e na ênfase de um tipo de reescrita do sentido de travesti, é importante olharmos para as imagens dos nossos corpos que viralizam — são cristalizações de sintomas, e muitas vezes sintetizam lugares sociais e identidades complexas de forma exemplar. De qualquer forma, para Pelúcio Luísa Marilac vai da abjeção ao glamour. O glamour seria, então, a imagem espelhada da abjeção: uma superfície lisa e atraente, brilhante, o lugar do luxo, o lugar da moda, o lugar dos concursos Miss Gay dos quais inclusive Roberta Close participou e foram preponderantes para o surgimento de uma sociabilidade travesti. O glamour é parte integrante da Estética Travesti. É como ao lidarmos com uma beleza travesti, a qual também tem a ver com o deboche travesti e ainda a excelência travesti, nos permite um lugar de negociação social. É uma certa, digamos, adequação à imagem de “mulher” que nos é projetada, e ainda assim não é a simples aceitação da concepção de mulher cis, mas é a adoção da feminilidade e utilizada com graça, com deslocamento, é o que popularmente chamamos (chamávamos?) de close e agora pode muito bem ser dito que é o lacre.
O argumento do texto de Pelúcio é de que o glamour é uma das formas de apropriação de determinados signos culturais associados tanto à feminilidade quanto à alta cultura a qual permitem uma maior valorização — mas lembremos que Ochoa aponta que ele não é política, é ferramenta de sobrevivência, portanto seus efeitos são ganhos individuais — de corpos e subjetividades travestis. Vale lembrar que o glamour é um marcador de sucesso entre aquelas que conseguem lidar com a negociação social imposta pela cisgeneridade. O texto da Larissa é sobre uma realidade ainda muito presente — 90% das travestis estão envolvidas no trabalho sexual — mas que creio que permita entrarmos em uma leitura que, veja bem, não é equivalente mas assim como a Operação Tarântula lega o status social da travesti no Brasil hoje, as travestis que exercem e alcançam o glamour também legam a todas travestis uma determinada leitura possível. Uma forma de negociação pessoal, a qual é necessária — afinal quem não gosta de estar gostosa e ainda receber aprovação por isso — mas que ainda assim não resulta em qualquer tipo de ganho político maior. É como sobrevivemos ao termos que lidar com espaços que nos são negados: a moda, as capas de revista, a grande mídia, as galerias de arte, photoshoots, os espaços de erudição e assim como no caso do texto de Larissa, a sonhada ida à Europa. Se antes, devido o momento de ainda maior marginalização das travestis, a única forma de ir a Europa era pela prostituição, hoje há um mercado de arte com uma retórica sobre a diferença o qual está muito interessado em derivar valor simbólico diferencial de subjetividades e corpos travestis. O que quero dizer é que agora tem trava indo pra Europa não só por conta do seu corpo, mas por conta dos seus trabalhos de arte e pela sua pesquisa acadêmica. É evidente que essas coisas não são equivalentes, o que quero demonstrar — e ainda dedico um texto mais prolongado a isso — é que existe uma lógica extrativista que tem migrado do nosso corpo para nossas subjetividade. A arte travesti pode (e será) ser tornada em uma mercadoria cara. E o glamour é um liso escudo brilhante com o qual conseguimos nos defender e de alguma forma galgar uma ascensão social dentro de espaços de “luxo”, “erudição”, “alta cultura” e “riqueza” os quais são dominados pela cisgeneridade. E quem não quer ser chic?
Não denuncia, a não ser com seu português errado, sua trajetória de exclusões. Luiza reitera o lugar que no Brasil se espera para as travestis. Mas, ao mesmo tempo o desloca. E aí está o que talvez nela apaixone e explique os tantos convites para entrevistas e aparições públicas, a capacidade de transformar abjeção em glamour. O glamour funciona assim “como um modo de reordenar espaço e tempo (mesmo que temporariamente) em torno de si mesmo para fins de encantamento” (Ochoa, 2010, no prelo). — Larissa Pelúcio, Próteses, Desejos e Glamour: Tecnologias de Si na construção de corpos travestis no mercado do sexo transnacional (2011).
O glamour, máquina de reprodução simbólica que leva as travestis da abjeção aos espaços de alto consumo (tal como foi o caso de Roberta ou até mesmo de Marilac e outras travestis em situação de prostituição que foram para a Europa) e de elite. Lá, nosso lugar de abjetas pode sempre ser instrumentalizado contra nós. Porém, o caráter fetichista e exótico pela forma que nós somos lidas nos torna em produtos perfeitos a serem consumidos pelo “alto” “gosto” da elite. Isso é particularmente sensível para mim que ocupo — infelizmente em uma condição ainda muito negada a maioria de nós — os espaços das Artes Visuais e da Academia. Nesses lugares, eu nunca passei por um tipo de violência tal como ela ocorre na rua. Pelo contrário, lá eu me torno um ser de alta provocação de fascínio. Pessoas progressistas, geralmente de alinhamento com a esquerda, parecem querer lavar a sua má consciência pela ausência de travestis na sua vida quando vem conversar comigo. Já fui chamada — principalmente por mulheres cis, mas já fui cantada em duas vernissages por homens muito mais velhos e ricos — de diva, musa e perfeita. Esse lugar exagerado de tratamento é o lugar de fetiche, e é o momento que me recordo que também sou vista como mercadoria. Afinal, o que há de mais chic que uma travesti que não só é feminina, inteligente, sabe se vestir e pode conversar com você sobre Freud e Marx? Esse lugar, que tenho me apropriado e tomado cada vez mais, do conhecimento que é dito como “erudito” tem provocado as mais curiosas reações de pessoas cis. Sou muito respeitada por homens cis, que não estão acostumados e encontrarem uma travesti tão (quando não mais) inteligente quanto eles, sou muitas vezes mal tratada por mulheres cis que me vêem como um tipo de ameaça, principalmente quando passo — sem intenção alguma e somente por motivos fetichistas — a chamar a atenção. [Trecho censurado sobre como sou tratada por outras travas, mas posso dizer que nas Visuais encontrei companheiras muito queridas como Vi Gabarda]. E talvez isso seja uma forma de glamour que Roberta Close tinha, que Linn da Quebrada tem mas poucas travestis da minha faixa etária tem: a inteligência no deboche e uma fala que desestabiliza o Outro Cis. O conhecimento, o carisma, o bom humor e até uma certa leveza na forma de se portar conquistam lugares que as gatas acham que vão chegar com corpo e make, mas a elite hoje espera mais de nós. Não acho que precisamos, necessariamente, nos adequar a isso, mas tá aí gatas: magnatas desejam nossos corpos e intelectuais desejam as nossas subjetividades. Sempre que caminho pelo espaço universitário ou por uma galeria de arte, vejo a imagem espelhada invertida do que passo na rua: de repente, me torno musa. Me torno quase, curiosamente, de Tabu em Totem. Alguém que pessoas cis podem, por vezes, tratar com veneração, mas isso é só sintoma dos seus sentimentos de culpa ou de desejo exótico camuflado como elogio.
A Ideologia Hétera e a manutenção do comportamento normativo em espaços trans
A consequência desse tendência em direção da universalidade é que a mente hétero não pode conceber uma cultura, uma sociedade onde a heterossexualidade não ordenaria todas as relações humanas mas também a própria produção de conceitos e de todos os processos que escapam a consciência, também. Adicionalmente, esses processos inconscientes são historicamente mais e mais imperativos no que nos ensinam sobre nós através da instrumentalidade dos especialistas. A retórica que os expressa (e qual a sedução eu não subestimo) se envolve em mitos, se volta ao enigma, procede por acumular metáforas, e a sua função é poeticizar o caráter obrigatório do “você-será-hétero-ou-nada-será”. […] Então o lesbianismo, a homosexualidade e as sociedades que nós formamos não podem ser pensadas em ou faladas de, mesmo que elas sempre tenham existido. Portanto, a mente hétero continua a afirmar que o incesto, e não a homossexualidade, representa a sua maior transgressão. Logo, quando pensamos com a mente hétero, homossexualidade não é nada além da heterossexualidade — Monique Wittig, The Straight Mind (1980).
“O que é uma mulher? Pânico, alarme geral por uma defesa ativa. Francamente, é um problema que as lésbicas não se tornaram em uma mudança de perspectiva, e talvez seria incorreto dizer que as lésbicas associam amar e viver com “mulheres”, porque “mulher” só tem significado dentro de sistemas econômicos e de pensamento heterossexuais. Lésbicas não são mulheres”.
Assim Monique Wittig termina o seu texto mais seminal.
Retornamos à Wittig, que inicia o texto e nos dá as ferramentas para elaborarmos o que chamei de consciência de gênero. Se Kristeva com a abjeção tocou em um ponto fundo da experiência travesti em como ela é lida e colocada socialmente, além dos poderes do horror que nos acompanham, de sempre desestabilizar o frágil ego cis-hétero a ponto de que eles retornem a um estado emocional da primeira formação egóica: o instável ego narcísico do bebê, a qual todo instante tem medo de ser devorado pela Mãe, se por fim somos demoníacas assim como sagradas nessa polivalência, Wittig me parece seguir outra via, mas a qual é igualmente importante para a experiência travesti. Assim como as feministas negras mostraram o “ponto cego” da concepção da “categoria mulher” dentro do feminismo estadunidense, então Wittig nos remete à algo tão importante quanto: que está implícito que “ser mulher” é “ser uma mulher hétero”.
Antes de prosseguirmos, gostaria de compartilhar que essa parte do texto é pra mim a mais difícil, decepcionante, frágil e triste. Vejo uma movimentação corporal-visual-ideológica da qual me parece caminhar por toda uma concepção de travestilidade que não parecia estar amparada em simplesmente abraçar o conceito de “feminino” e rejeitar todo traço de “masculino” (vamos lá, travecos, estou falando com vocês: isso é impossível e vocês sabem bem disso). Enquanto antes a posição mais marginalizada das travestis sempre nos lembrava que a cisgeneridade, não importa o quão alto o grau de passabilidade, jamais nos aceitará por quem somos ou nos dará autonomia para decidirmos quem queremos ser. O que descreverei aqui me parece uma ideia menos consciente de que o glamour é uma forma de defesa e sobrevivência pessoal, e sim uma manifestação perversa dele, baseada em uma lógica de representatividade e, portanto, capitalista. A representatividade só poderá existir enquanto ela funcionar em prol da manutenção da exclusão, pois é isso: como disse na seção anterior, somos uma mercadoria cara. Algumas de nós entenderam isso muito bem. E eu acho justo que entendamos isso e usemos em nosso favor, porém nunca podemos transformar isso em comportamento coletivo, como se se algumas travas “vencerem” (eu sempre me pergunto o que isso quer dizer, mas basicamente é a ideia do acesso a um espaço antes negado) irá levar todas nós juntas. A verdade é que não levará. Irá, na verdade, trabalhar como uma forma de cooptação. Enquanto galerias e afins estão muito satisfeistas em reunirem 2-3 grupos minoritários e 2-3 “representantes” de cada grupo, a maioria das travas ainda está morrendo. Não estamos vencendo, por mais que saltos qualitativos — como do mercado da prostituição ao mercado de arte internacional — estejam sendo feitos.
Estão vendo por que Wittig ganha uma inflexão forte ao ser trazida para a reflexão travesti? Assim como Luce Irigaray e Julinha, mais uma das nossas belas criptotravas.
Wittig me toca por ser uma sapatrava. E por ter que lidar, em espaços onde circulam mais travestis, geralmente com travas héteras. O que falo a seguir não parte de um lugar de lesbianismo político e outros mitos puritanos que ganharam tanta tração durante os Estados Unidos. Pois com um alinhamento marxista, Wittig nos lembra — assim como Angela Davis tem feito exemplarmente por tantos anos — que a luta é contra todas as formas de opressão. Isso significa, se seguimos Davis, que a luta é de todos os grupos que são destituídos. Ou seja, o Feminismo é uma luta anticapitalista, e nunca é excessivo lembrarmos disso. Como vou tratar daqui pra frente, o capitalismo exemplarmente é capaz de capturar discursos que inicialmente são disruptivos e vendê-los como um lifestyle, um produto a ser consumido, uma série de marcas e consumos que nos tornam, então, pertencente à determinda identidade, como bem exemplifica o pink money. Não podemos tornar identidade em uma matéria e questão de consumo.
O que quero fazer com Wittig remete ao trecho inicial com a questão consciência de classe — consciência de gênero. Ok, se a consciência de gênero é desenvolvida a partir de uma convivência íntima e múltipla com outras travestis e pessoas trans, então o que seria oposto à uma consciência de gênero? Bom, eu vou defender, assim como a francesa fez em A Mente Hétero, que se trata de uma Ideologia Hétera, hoje presente em muitas travas. Vocês acham que eu não percebo os olhares e desaprovações — devo pautar que muitas vezes de travas mais novas do que eu, risos — por construir um corpo mais musculoso? Não entrarei em detalhes, mas pra mim é mais patético do que é ameaçador a forma que eu sou tratada em determinados espaços trans, onde sim, justamente ser trans é visto unicamente como passabilidade. O Mito da Passabilidade — e aqui podemos lembrar de Mitologias (1957), de Roland Barthes, onde não só ele demonstra como a ideologia mitifica o cotidiano como explicita a estrutura duplamente signíca do Mito — me parece vir de um lugar que não é da travestilidade. Após o AI-5 em 1968, a chave vira para as travestis que associadas ao “Plano Cohen” — um plano de estabelecimento de ordem comunista na América Latina instrumentalizado pela Escola Superior de Guerra — todas as formas de minorias passam a ser perseguidas. Assim prossegue até que durante os anos 70 travestis proliferam em centros urbanos como São Paulo e Rio. Com a crise da AIDS, como dito anteriormente, as travas passam uma perseguição de meses e tornam-se motivo de pânico moral. Instituídas fortemente ao lugar de garotas fálicas e abjetas.
Contudo, quantas de nós estão realmente interessadas na travestilidade como uma identidade coletiva? De fato, toda identidade é coletiva, mas a coletividade pautada por uma busca por libertação da opressão, solidariedade coletiva e rejeição à lógica normativa parece ter sido perdida. Hoje, e isso é analisado longamente em autoras como Wendy Brown que buscam entender o “sujeito neoliberal” e a sua lógica, a forma de se entender “travesti” é muito mais individualizada. E por que? Porque com o pequeno espaço midiático conquistado dos últimos anos, passa a existir um “mercado trans”. E sempre que estabelece um mercado parte da retórica política torna-se, como bem colocaram os autores do queer, uma lógica aguada ou assimilacionista. A radicalidade do discurso parece não ser mais necessária, visto que há uma representação midiática “mais positiva” (mais sobre isso no futuro, mas pesquisem “mulher trans” e “travesti” no Google e vocês vão perceber pra o que o discurso tem se encaminhado). Na realidade, me parece que também com uma certa popularização da comunidade LGBT como um todo, sejam por filmes, séries e outros circuitos midiáticos, passam-se a se importar referenciais. Nosso imaginário aos poucos é formatado tendo os gringos como matriz. E aqui não quero dizer, obviamente, que não devemos aprender com as estrangeiras, já que passei grande parte do texto justamente me servindo de autoras que não são brasileiras. Contudo, ao modularmos o discurso político é importante preservar a memória histórica. Uma ferramenta teórica é isso, apenas uma ferramenta. No momento em que uso Julinha pra falar das travas, o conceito de abjeção não é só dela, é nosso. A questão que quero trazer é mais para o que Wittig aponta: o que há de implícito na manutenção ideológica de “ser mulher”, e no nosso caso, ser travesti?
O que quero propor é que com um acesso levemente maior da população travesti a uma representação midiática mais ampla, e pelo apagamento consciente que o Estado promove de todos os grupos minorizados, parte do “nem homem, nem mulher: travesti” — uma frase famosa entre travas, porém que hoje parece esvaziada de sentido quando dita por determinadas pessoas — perdeu-se. Hoje, inclusive, vemos que um termo que não é daqui, que pertence à lógica política de lá (trans woman ou transsexual) tem sido o lugar de adoção de muitas de nós. Não sou polícia de identidade, e acho que a autoidentificação parte de lugares muito pessoais. O que quero denotar com isso é que o Mito da Passabilidade e a referência de mulheres trans gringas tem criado, principalmente entre as travas da minha faixa etária pois as novas estão mais espertas, uma ideia de que há algum destino na transição. Que trata-se, portanto, de fazer uma série de procedimentos (hormonização — cirurgias cosméticas — silicone — redesignação sexual) aos quais nos tornarão, por fim, mais passáveis. A realidade é que sempre existirá algo que entregará que somos travestis. Não quero entrar nos detalhes de quais são esses fatores, mas há algo da nossa estruturação anatômica que parece pronto a nos “entregar”. Além disso, a imagem do que significa “ser mulher” é tão pequena que para nos é mais fácil “deslizar” e sermos “identificadas”. O que quero propor, na verdade, é que travestilidade é processo e passagem, o que Gloria Anzaldúa (para compreender sua condição como chicana, mulher e lésbica) chamou de morfogênese: a realidade que o “Eu” é instável, que os marcadores podem conter contradições e tensões entre si, e o prazer e uma certa honestidade consigo ao deixar-se transformar com os movimentos da vida e da subjetividade.
O que quero dizer com tudo isso é: existe uma Ideologia Cis a qual não está restrita a pessoas Cis, assim como agir de forma travequeira também pode ser feito por pessoas trans ao sermos, de alguma forma, desumanizadas. Se lésbicas não são mulheres, será que travestis são? Eu creio que não. E com isso, deixo claro toda a nossa filiação política do Travafeminismo com a tradição do Feminismo, um desenvolvimento político-teórico que quer, sim, se inscrever em uma luta política maior. Buscar o lugar da travestilidade é evidenciar que essa luta tem história, e que devemos sempre buscar uma luta que pensa na interseccionalidade e não esquece dos marcadores. O que quero sublinhar é que um certo tratamento violento — não só eu, muitas das travas que me relaciono identificam isso ao transcentrar seja com travas ou com transmascs —, um certo comportamento que remete ao comportamento do homem cis, é passível de ocorrer dentro da nossa intimidade. Com isso, evidente, não quero dizer que alguém se torna “mais ou menos” trans por isso. Mas que a norma é uma Ideologia que se introjeta em todos e todas nós. Se não mantemos uma consciência, convivência e engajamento crítico, é mais fácil reproduzirmos um comportamento de uma lógica que na realidade nos violenta e nos exclui. É o que vejo hoje no comportamento de travas que acreditam serem passáveis, que gostam de debochar de “travestis menos passáveis” ou que constroem outra feminilidade, e pra quais um lacre é representativo de ação política. Essa forma de esvaziamento da convivência travesti tem levado a situações que eu acho, no fundo, decepcionantes. E é tudo muito patético.
Quando falamos sobre ser travesti sob uma ótica cis, nada além de fazemos do que reproduzir Ideologia Cis. Nada além estamos fazendo do que fetichizar uma “subjetividade” e um “corpo”, uma “visualidade” do que significa ser “Feminino”. O que nos lembra Wittig, é que determinados feminismos de orientação lésbica reificam-reforçam-sustentam o que significa o “Feminino”. A realidade é que assim como travestis são artificiais, monas autoconstruídas a partir do deslocamento de tecnologias de hormonização para mulheres cis introduzidas em corpos que nasceram, anatomicamente do sexo masculino, e rainhas, princesas e profetas de concursos de beleza, festas e espaços religiosos; qualquer cultura, seja ela Feminina ou Masculina é construída, artificial e parte de um longo processo de mudança, mesmo que determinados aspectos — como a dominação dos homens pelas mulheres — mantém-se mais rígidos. Ao nos construirmos travestis, penso que não se trata de sermos femininas, ou acreditarmos que um dia seremos passáveis. Se trata de Outra feminilidade. E também pode ser uma reforma do que significa ser “Masculino”, porque como Monique já apontou, muitas das mulheres que adotaram um “comportamento masculino” (muitas delas lésbicas, como é o caso exemplar das butchs, fanchas e caminhoneiras) começara a se desprogramar. Não se trata de escolher entre um pólo ou outro, se trata de desfazer a opressão. Trata-se de abolir o sistema sexo-gênero.
A quadralidade travesti, o ponto de suspensão das contradições da Ideologia Cis e uma abertura epistemológica
[…] A não ser que o que ela propõe contemplar, a própria beleza, seja entendido com o que confunde a oposição entre imanência e transcendência. Um horizonte sempre sensível nas profundezas de tudo o qual sempre apareceria. — Luce Irigaray. Sorcerer Love: A Reading of Plato's Symposium, Diotima's Speech (1989).
Apontei três pontos do desejo que eu, como travesti, experenciei até então.
É possível uma quarta posição?
Penso que sim. Essa parte do texto é a mais especulativa. Até então busquei fazer uma costura crítica entre: os conceitos de determinadas autores feministas, o status social da travesti no Brasil e a minha própria experiência pessoal. Daqui pra frente quero falar sobre o futuro, do que podemos fazer daqui pra frente e do que talvez pelo menos nos ofereça vislumbrar uma nova forma de pensar a travestilidade, a política e — por que não? — a forma de se construir conhecimento. Antes de eu retornar a citação, eu gostaria de propor um pequeno experimento para cada travesti lendo isso:
Você sabe dizer com precisão qual foi a primeira vez que você não se “sentiu homem”? Ou que alguém te tirou do lugar de “ser homem”?
É um processo difícil olhar para a infância de uma travesti. Contudo, ao compartilhar as minhas experiências com outras travas, vejo que temos muitas sobreposições. É comum sermos negadas o lugar de “menino” ou de “homenzinho” ou de “hominho” ou de “macho” logo durante a infância. Como as crianças pré-puberdade tem de forma geral uma aparência muito mais parecida entre si, isso se manifesta em uma forma de se expressar que é vista como “aviadada” ou “feminina”. Esse lugar de exclusão, de ser chamado de “menininha” ou de “viadinho” vai se tornando gradualmente mais intenso. Qualquer tipo de comportamento que demonstra fragilidade e sensibilidade ou esteja fora do Pequeno Cercado da Masculinidade já te coloca em uma posição feminilizada. Esse é, muitas vezes, o primeiro momento de entendimento como “travesti” que passamos. É claro que naquele instante, muitas vezes, nem uma referência de travesti ainda existe. E por isso algumas de nós se identificam como gays ou homens que são vistos como afeminados. Isso pode se traduzir de muitas maneiras as quais não cabem aqui, mas merecem um estudo por si só.
O que quero dizer com isso é: a experiência travesti é retrocrônica.
Eu acredito que sim, mesmo com antecedentes de exclusão de homens ou tratamentos violentos, existe o momento que finalmente dizemos, para nós e para o mundo — nem homem, nem mulher: travesti.
E é nesse momento que todas as nossas experiências do passado, principalmente aquelas do início da sociabilidade entre crianças e adolescentes passa a ser entendido sob uma nova ótica. Ao nos desfazermos — e o processo é longo, tanto que algumas que já transicionaram estão lá — de uma Ideologia Cis, vamos entendendo que não existe um ponto específico de ser travesti, ele é um processo que tem uma lógica espiralada. As tomadas de posição durante a adolescência — e acho lindo que o processo de autoconsciência veveco esteja acontecendo mais cedo — ou no início da vida adulta dão novo peso e significado a toda a nossa vida.
Quando, então, virei travesti?
Talvez seja difícil, mesmo impossível dizer.
O que quero apontar com isso é que travestilidade é passagem. Que é algo que é transversal, e muda completamente o nosso entendimento de tempo. Se a própria ordenação do tempo linear na nossa vida pessoal é espiralada, não devíamos honrar um pouco do que esse processo de autoconstrução — o qual é baseado em um alto caráter coletivo como enfatizado durante o texto todo — e ao invés de construirmos uma Imagem Rígida do que é “ser travesti”, não devíamos entender isso como um processo dinâmico, como uma Relação que é complexificada sempre que o status social da travesti muda, como falei na seção que trabalhava com Larissa Pelúcio, o mercado transnacional de prostituição e arte? Esses movimentos midiáticos, culturais, e até mesmo a “lógica representativa” muda o nosso lugar na sociedade, isso é inegável.
A questão é: vamos então privilegiar que se trata sobre tomar para si o movimento imprevisível da vida para pensar em como mudar a própria subjetividade?
Eu acho que essa é uma possibilidade, e meu espaço de convivência com outras travestis tem apontado pra isso. É o que tenho chamado de ser travacêntrica: privilegiar de forma geral a convivência com travestis, de várias formas afetivas e profissionais. Nesse espaço, o convívio torna a consciência de gênero mais aflorada. As diferenças entre as travas denota, com mais força, o que temos de comum entre nós, o que se manifesta como pensamento estrutural exclusório e fetichista da cisgeneridade sobre nossos corpos e subjetividades. Além disso, também vamos compreendendo com mais força o que da nossa sensibilidade é ferramente e arma de sobrevivência. Encontramos um conforto e compreensão que é raro, se não único. Pensar a elaboração teórica em fricção próxima da minha experiência cotidiana. As travestis construíram conhecimento desde que se entenderam como identidade nos anos 60, utilizando várias tecnologias — processos famarcêuticos, sócio-culturais e linguísticos — para que essa identidade criasse um espaço tanto de acolhimento como força política. A revisibilidade do sistema sexo-gênero é algo que as travestis inauguraram em uma criação de conhecimento marginalizado e oral.
O que quero retormar, aqui, é a prática cognitiva de Wittig usando a travestilidade como modelo.
Agora que passamos por esse pequeno experimento de temporalidade subjetiva, vou trazer pra conversar comigo e com você Luce Irigaray e Simone Weil e dar fim a este texto que escrevo com tanto prazer.
Vou fazer uma relação com um passado que diz sobre a “categoria mulher” antes da “categoria mulher” como entendemos hoje existisse: Irigaray escreve sobre a Dialética do Amor e a defesa dela pela sacerdotisa Diotima em 1989. Diotima propõe uma forma de pensar a dialética que se opõe ao método socrático: 1. o aqui. 2-3. os dois pólos de encontro. 4. um além que nunca se encerra. O amor é segundo Diotima uma forma de mediação infindável. Não há fim, apenas movimento.
O Amor (Eros) não é nem mortal nem imortal, mas um intermediário. É o que Diotima caracteriza como “demoníaco”. Apesar desse sentido permanecer forte na teologia cristã, e eu busco as filiações diretas com demônios e anjos como mensageiros, a daemon na Grécia era como a voz da intuição. Era como um lado menos previsível da própria razão, e o próprio Sócrates pragueja contra sua (intuição) daemon. A daemon era a função da Alma que se manifestava como mediação de Sensível e Racional. Ao invés de oposições como Razão e Desejo, ou entre Masculino e Feminino, Eros é o intermediário. O Amor, pelo espaço subjetivo que cria entre as amantes, encontra o imortal dentro da mortalidade.
Curiosamente, Simone Weil tem um texto que está em O Peso e a Graça chamado Metaxu. Metaxu (intermediário) ali é seu termo para tratar de Eros.
Para Weil, tudo que é criado é essencialmente uma mediação. Nem um extremo nem outro. Nem o começo nem fim. Movimento, passagem, transformação. Ponte. Ao falarmos da abjeção, vimos que o sagrado e o profano são mais próximos do que imaginamos. Os processos de desmembramento e outros rituais religiosos são, segundo Julinha, formas de tentar “expurgar o abjeto”. E ainda sim, é o fundamento da ordem social. Sagradas e profanas, prostitutas e modelos, abjetas e glamourosas, a travestilidade é carregada de uma intensa oscilação entre dois ou quatro pólos. Se entendemos que tudo é intermediário — que se trata de meio e não de fim — parece que apreendemos melhor o que significa ser travesti. Ou como lembra Weil: “O temporal, que só tem sentido pelo e para o espiritual, não se mistura com o espiritual. Somos conduzidos ao espiritual por nostalgia, por transbordamento. É o temporal como ponte, como metaxu”.
É hora de lançarmos A Dialética Travesti.
Temos que enganchar o nosso próprio desejo no eixo dos polos. — Simone Weil. Metaxu, O Peso e a Graça (1947, trad. 2020).