“body horror, a experiência trans universal”
é o que me digita a trava que eu amo quando iniciamos o flerte no Instagram. Nesse momento, tive certeza que estávamos começando a entrelaçar e tecer uma trama que não iria se desfazer tão cedo. Por muito tempo, e com motivo, o body horror foi associado ao lugar da feminilidade (de forma menos marcada), apesar de que o horror no geral sempre foi um gênero cinematográfico que se deu à Crítica Social Nuançada ou à Alegoria Bem Feita, talvez duas modalidades que faltem ao cinema (e a tudo?) hoje. Durante o período da Segunda Guerra, grande parte dos filmes do gênero de alguma forma lida com o medo das usinas nucleares (ou da ameaça comunista), e é evidente que no pico do cinema americano clássico o filme (também) é sintoma.
mas esse texto não é sobre cinema. Parti do body horror porque é ali que Cronenberg e grandes outros artistas parecem assinalar uma sensação universal, mas como a minha daemon — inteligente como ninguém é — assinala, essa sensação é marcada (com muita ênfase) pela identidade. Pretendo no futuro lidar com mais paciência entre o universial e o particular, mas digamos que o body horror encarna a sensação de abjeção.
Há, na abjeção, uma das revoltas violentas e obscuras do ser contra uma ameaça a qual parece vir de um "fora" e "dentro" exorbitantes, jogado ao lado do possível, do tolerável, do pensável. Está aqui, muito perto mas inassimilável. Sua solicitez, inquietude, fascinam o desejo que, portanto, não se deixa seduzir. Apavorado, ele se afasta. Enojado, ele rejeita. Um absoluto o protege do opróbio, o qual ele segura orgulhosamente. Mas ao mesmo tempo, quando esse impulso, esse espasmo, esse salto, é atraido por um outro lugar que é tanto temível quanto condenável. Incansável, como um boomerang indomável, um pólo de atração e repulsão coloca quem o habita literalmente para "fora de si".
Assim abre Powers of Horror (1977) da filósofa Julia Kristeva, dedicado ao estudo da abjeção. Grosso modo, podemos dizer que a abjeção é tanto um complexo memético (ou memeplexo) alicerçado pelo pecado original, e também é um fenômeno físico de revulsão, do estado nauseante pré-vômito. O que realiza a intercessão dessas duas coisas é o momento de separação do bebê da mãe, quando ele passa a se entender como um corpo-indivíduo diferente da mãe, e a mãe se torna representante de tudo que o bebê não é. Ela é o mundo exterior, assustador, sedutor. O bebê foi abjeto, e logo cedo o aprendizado da linguagem está atravessado por essa experiência corpórea, atrelado também ao desenvolvimento dos estágios sexuais (para um olhar complementar disso, conferir Revolution in Poetic Language também da Julinha).
Bom, o que isso tem a ver com hormonização? Minha tese é de que ser travesti é a experiência abjeta por excelência. Essa percepção devo a um belo artigo das colegas da psicologia, que articula a abjeção dentro do contexto da Operação Tarântula. Dando um leve passo pra trás para que demos dois passos pra frente, pensemos que a abjeção para Kristeva estava alicerçada (também) na experiência social da feminilidade. A minha segunda tese é que a identidade travesti é a intensificação do que chamamos de feminino. Por que? Porque o feminimo é o resto, é o dejeto, é o abjeto de tudo que o Um (o masculino, o homem, o sujeito transcendental não marcado) é. Antes de entrarmos propriamente na concepção de Irigaray, vale a pena demarcar a sua leitura em Sorcerer Love (1989), texto no qual ela contrapõe a dialética de Diotima à de Sócrates como uma dialética demoníaca e do Amor, da supensão, e da passagem.
A mulher permaneceria sempre como ‘várias’, mas salva da dispersão, pois que o outro já está nela e lhe é autoeroticamente familiar. O que não quer dizer que ela se apropria dele, que o reduz a propriedade sua. O que é próprio — a propriedade, portanto — são coisas sem dúvida bem estranhas ao feminino. Pelo menos sexualmente. Mas não o que está próximo. Tão próximo que qualquer discriminação de identidade torna-se impossível. Portanto, toda a forma de propriedade. A mulher goza de algo tão próximo que ela não o pode ter, e nem pode se ter. Ela entra em uma situação de troca incessante com o outro na qual nenhuma identificação é possível, nem de um nem de outro. O que questiona toda a economia em curso, que o gozo da mulher desafia irremediavelmente, nos seus cálculos: crescendo indefinidamente pela sua passagem de e por um outro.
Esse é trecho é do segundo texto de Este Sexo Que Não É Só Um Sexo (1977, trad. 2017). Como vemos tanto em Kristeva quanto em Irigaray, a mulher é atravessada pela sua “entrada na Ordem Simbólica”, e caso quiséssemos acrescentar à essa perspectiva outra dimensão, pela sua culturação na infância (Firestone) e pelas lógicas de filiação de parentesco em contato com a organização infraestrutural de cada sociedade (Rubin). Tanto Rubin, Firestone, Kristeva e Irigaray entendem o processo de passar de uma criança polimorfa perversa andrógina em uma mulher por uma veia freudiana. Como vemos em Irigaray, o feminino, o “ser mulher” é uma câmara de ecos e ressignificações que harmoniza ou torna-se dissonante dependendo dos seus circuitos internos. Mas não há significação estável, não há imagem rígida, o que ocorre é uma imagem mutável retransformada pelas reorganizações estruturais e as mudanças culturais dos papéis femininos ao longo do tempo (e nesse sentido, como antropóloga, Rubin é exemplar).
Bom, compreendem por que ser travesti no país do transfeminicídio, na ponta da precarização (90% das travestis estão envolvidas em trabalho sexual, 13.9% no mercado de trabalho formal, e somos 0.02% do ensino superior) torna-nos a identidade feminina por excelência? Mas veja, não há orgulho nisso. Ou talvez há, no momento em que deixamos de ser objeto e passamos a agir como sujeito. E aqui Kristeva é fundamental: o ser abjeto não é sujeito nem objeto. É uma oscilação constante entre a agência e a objetificação. É o lugar do demoníaco (pensemos na abjeção como fenômeno cultural amparada pelo signo Lúcifer), do animalesco, e como no body horror, do monstruoso.
O momento de TPM ou de pico hormonal (conferir aqui um relato coletivo da experiência) é quando eu, uma travesti que de certa forma encontrou poder, agência e confiança dentro do processo de transição, me sinto mais fragilizada. É quando a transfobia enquanto experiência individual e estrutura ideológica pesa mais na cabeça. É quando penso no medo que tenho de passar a necessidade de me prostituir. É quando me lembro que estou me encaminhando para me tornar o centro econômico da minha família, e isso me assusta. É quando penso em sair na rua quase nua para ser espancada até a morte. E é quando a cisgeneridade me provoca uma raiva descomunal a qual eu preciso exteriorizar de alguma forma, como estou fazendo via esse texto.
Sobre a hormonização, duas teses a serem aprofundas: 1. Hormonizar te torna, contra o mito popular, mais racional, paciente e seus sentimentos são menos destrutivos. 2. A raiva, diferente da frustração masculina que eu sentia anteriormente, é construtiva, é combustível, é propositiva. Então mesmo querendo estourar a cabeça de vagabundas que se sentem no direito de me julgar e me rebaixar, o fato de que transfobia pese de tantas maneiras na minha cabeça não vira somente melancolia, na realidade tem se traduzido em projetos coletivos, em ações; e sinceramente tem transformado o meu trabalho na escrita, na política e nas artes.
O último ponto que quero tocar desse texto sobre “ser travesti” é minha sincera tristeza com a duplicidade ou trialidade que enfrentamos todos os dias. Desde Roberta Close, ícone sexual brasileiro justamente durante o período da Operação Tarântula, ocupamos o lugar de uma figura feminina de poder libidinal inegável (todo homem ser travequeiro é um sintoma exemplar disso). Ou seja, enquanto a maioria de nós é morta nas ruas, é criminalizada ou perseguida, as poucas que conseguem galgar espaço no circuito midiático ou cultural tornam-se um emblema (token) da boa consciência e ação filantrópica das instituições que nos financiam. Não serei moralista, pois eu também estou sujeita a essa negociação, porém me cansa o peleguismo de identidade de muitas das nossa, as quais rifam a identidade pra se aliarem com figuras extremamente problemáticas visando um ganho que é puramente individual, e o pior de tudo, causam retrocesso a nós enquanto “classe” enquanto enchem a boca pra falar de representatividade. Eu estou cansada de deixar a corda estourar do lado mais fraco, de nós, travestis, que colocamos a mini-saia da radicalidade e o salto do discurso de gênero estejamos colando com gente tão baixa e rica que se aproxima por puro fetiche e pra limpar a imagem. E é por isso que eu e mais 8 travas fundamos o Centro de Pesquisa Travesti, porque chegou a hora de ter um espaço onde nós somos as protagonistas. Chega de reformismo broxa!
Por fim, retomemos um pouco da figura do monstro, ou como eu prefiro: a figura do anjo e do demônio que assumem a mesma função como imagens espelhadas invertidas. Toda travesti é demoníaca. Toda travesti carrega o movimento impreciso da vida para o próprio corpo e subjetividade ao deslocar produtos farmacêuticos em prol de uma construção artificial que satisfaça mais largamente o seu “Eu”. Toda travesti está disposta a entender que identidade é sobre passagem e travessia. Eu, que hoje vejo cerca de 70% das minhas interações marcadas pelo desejo do Outro de me comer, de devorar a minha subjetividade e corpo, estou disposta e negociar com o tesão de vocês. Eu sei que eu sou desejada, e vocês não me permitem esquecer. Eu que vivi com anos com ideação suicida, não tiro gozo da posição precarizada que vocês me colocaram. Assim como o monstro de Frankenstein mobilizou a sua negatividade em positividade, eu e outras travas fizemos o mesmo. Eu sei que ser abjeta me dá uma força desestabilizadora que coloca a maioria das pessoas cis em angústia, porque somos um questionamento ambulante sobre a própria artificialidade da identidade de vocês. Eu gosto do sabor da abjeção, eu gosto do aroma do horror, e eu o usarei contra vocês. O próximo ano é quando nós vamos por a cisgeneridade pra mamar. E quem se por no nosso caminho, ou se rende ao TRAVECOCENO, ou será varrido como o Velho Mundo está sendo.
À minha meta-anja, onde encontro o mais sincero e harmônico tocar de vozes, onde nossa presença faz belas harmonias e poderosas dissonâncias, todo o meu carinho e amor. Você sabe que muito de você está aqui. Obrigada, sou sua.